Do mar às mesas, o caminho dos peixes até alguns dos mais renomados restaurantes da região
Experts no assunto dão dicas de como escolher o melhor pescado
Por Jéssica Lauritzen
RIO — Se olhar o fundo dos olhos dele, ainda lhe parecerá vivo. A carne manterá a textura firme e resistente ao toque, ainda que brilhosa e escorregadia coberta pela gosma marítima, e só derreterá na hora certa, na boca. Seu cheiro será agradável e suave. E, em alguns casos, como o do salmão, exalará notas aromáticas semelhantes às de melancia; basta esfregar a barriga por dentro, dizem os mais experientes no assunto. Deixando fluir a imaginação, dá para ouvir até o barulho do mar. É assim que os cinco sentidos ajudam a identificar um bom peixe, o mais fresco.
Do mar à mesa, uma complexa cadeia se estabelece entre mergulhadores, restaurantes e estas belas espécies para que o cliente tenha sempre ao seu dispor a melhor iguaria. Mas não é todo dia que se consegue o feito. Por esta razão, o Giuseppe Grill, no Leblon, se antecipa e deixa um aviso no cardápio dos peixes de mergulho: “A disponibilidade depende da sorte dos mergulhadores”. Outros peixes, como bacalhau, salmão e peixe branco, não faltam. Alguns são importados, como o santola, que vem da Patagônia; as ostras, de Santa Catarina; e as vieiras, de Ilha Grande. Estas últimas são entregues três vezes por semana.
O Giuseppe conta com cinco profissionais, praticantes da modalidade de caça submarina, para o abastecimento de sua peixaria, uma ala com gelo e em formato de vitrine para os clientes: escolhe-se o peixe, como numa feira, e, em seguida, ele é pesado (inteiro) e assado na brasa. Com frequência, recebem garoupa, pampo, robalo e badejo, preferência do proprietário, Marcelo Torres. O maître, Didi Ribeiro, diz que o peixe oferecido é o do dia:
— O que os mergulhadores pescam é o que vendemos. Aqui não tem geladeira para peixe. Quando o mar está para peixe, recebemos 40 ou 50 quilos, e o peixe vai todo. As garoupas são a nossa Ferrari. Nosso polvo também é famosíssimo; vem gente do mundo inteiro comê-lo aqui assado na brasa.
Ele faz questão de inspecionar pessoalmente as remessas que chegam ao restaurante e diz que um hábito comum ao verificar se o peixe está fresco pode ser cilada:
— Eu não gosto muito de olhar as guelras porque muitos têm elas vermelhas e são velhos; outras vezes não são vermelhas e estão frescos. Nas feiras, me dá até arrepio: vendem filé de viola como se fosse cherne ou badejo. Minha dica é comprar o peixe e pedir pra limpar e fazer o filé na hora. O peixe sendo fresco, pode ser qualquer um; é que nem carro zero quilômetro — aconselha o profissional, há 30 anos no ramo de frutos do mar.
O principal fornecedor é o mergulhador Paulo Junior, gerenciado por Bruno Hermanny, ex-mergulhador e hoje empresário no ramo. Junior garante que, para a boa safra, “quanto mais cedo, melhor”. Para a pesca seletiva, sai munido de roupa de neoprene (para proteger do frio, das pedras e de ouriços, entre outros), luvas, cinto de lastro, nadadeira de fibra de carbono, arbalete, máscara e snorkel. É tudo pescado na área e também em Angra dos Reis e Cabo Frio.
— O Clube dos Marimbás (onde sou sócio) só abre às 8h. Às vezes, nós mesmos colocamos o barco na água às 6h, e, quando a pescaria está boa, ficamos até escurecer. Geralmente, se tem muito peixe em um dia, no seguinte não tem nada. A pescaria é algo complexo porque o mar pode estar de ressaca, a água pode estar ruim ou realmente não ter peixes — frisa.
A pescaria também fica comprometida no período de fim de ano, não por falta de peixes, mas por ser a época na qual a maioria dos mergulhadores aproveita para tirar uns dias de férias, lembra Claudia Carvalho, empresária fornecedora dos peixes do restaurante Bagatelle, no Jockey Club da Gávea. Durante o encontro com O GLOBO-Zona Sul, ela alertava o chef do bistrô francês, Thiago Maeda, sobre a raridade que tinha em mãos: um polvo de quase três quilos e único disponível; além de lagostins, peixe vermelho e camarões.
— O polvo está na moda; todos os restaurantes procuram e só serve do grande — diz.
1.400 TIPOS DE PEIXES EM UM LIVRO
O robalo que se come no Bagatelle vem do Maranhão ou do Piauí; o atum, da costa do Nordeste; os demais são pescados da costa do Espírito Santo até a costa de Santa Catarina. A fornecedora, Claudia Carvalho, se esmera para atender ao nível de exigência dos grandes chefs e é implacável na vistoria de barcos parceiros, que descarregam toda segunda, quarta e quinta-feira. Além do restaurante francês, ela vende para espaços como o Fasano, o Gero e o Copacabana Palace.
— Eles já conhecem o gosto dos meus clientes, sabem o que podem vender ou não. Já levei chefs no cais para verem a diferença: meu peixe está sempre no gelo, dentro da câmara; examino um a um. O camarão vem de cem metros de profundidade. Por isso tem mais proteína e aquele sabor marcante — conta Claudia.
Um dos pratos preparados por Maeda, a Casserole du Pêcheur, composta de frutos do mar, é servida conforme o que os pescadores conseguem de mais fresco, entre polvo, lula e camarão VG, cavaca, marisco e lagostim. Ele diz que o prato de polvo à la crostine já bate de frente com o de filé-mignon.
Sempre peço peixes de até um quilo e meio (da seleção do peixeiro) e de até R$ 35 para não onerar muito o prato. Para ser tudo fresco, temos um prazo: depois de limpar o peixe, ele é usado por, no máximo, dois dias para os clientes; se passar, congelamos e preparamos moqueca para os funcionários. Eu monto o cardápio com o que chega.
THIAGO MAEDA
Seu nome está atrelado a frutos do mar desde o período em que trabalhou em restaurantes de São Paulo. Mas seu gosto por peixes é mais que natural.
— Ter aprendido a limpar peixes em um sushibar me abriu portas para ser contratado em um restaurante de alta gastronomia. Eu sou japonês e como peixe porque gosto mesmo. Largaria todas as proteínas, menos essa. Quando o pescado chega ao restaurante, fazemos uma brincadeira na cozinha: sashimis — conta.
Os peixes abriram caminho também na vida de Cesar Hasky, restaurateur do Ten Kai, que tem unidades em Ipanema e no Centro, e o conduziram de engenheiro a empresário no ramo da culinária japonesa. A ideia de transformar o hobbie de fazer sushi em fonte de renda veio no período em que ficou desempregado.
— Fora o ser humano, a coisa que mais amo é peixe. Não é comer. É olhar para ele. Começou por necessidade, passou para paixão e descobri o amor por ele, através da culinária. Vou carregar isso por toda a minha vida. O peixe me trouxe muita felicidade, por isso me emociono ao falar dele. É como um ímã, onde tem um peixe eu quero ir — conta o egípcio, que vê o animal aquático como um talismã de proteção (tal qual o símbolo do olho-grego).
A fixação se reflete na sua rotina. Ele faz questão de ir pessoalmente dia, sim, dia não, ao Mercado São Pedro, em Niterói, às 5h, escolher as melhores peças. Ele também segue o mantra de que “peixe bom é o peixe fresco”, sendo que os mais saborosos, frisa, são os que têm mais gordura, entre eles atum, olho-de-boi e olhete. Segundo Hasky, o salmão pode até ser incluído nessa lista, mas é moda de brasileiro, “japonês não valoriza”.
— O primeiro sushiman que o Ten Kai teve, Shimizu (já falecido) foi meu grande mestre; com o pouco que eu tinha de experiência, ele só confiou em mim depois de três anos. Durante dez anos, eu frequentei o Mercado de Niterói com ele e aprendi muito. Você vê dez peixes pulando, mas não sabe se os dez estão saudáveis, temos um critério rigoroso na seleção. E o modo de conservação é o nosso segredo — diz.
Com o expert Satoshi Kaneko, Hasky forma uma dupla infalível de sabichões do pescado. Difícil alguma espécie desbancar o chef japonês, dono de um guia ilustrado com 1.400 tipos de peixes, importado de sua terra natal.
— Cerca de 90% dos peixes, eu conheço; um ou outro é surpresa. E às vezes o Satochi só sabe o nome em japonês. Quando estou na dúvida, ele pede para esperar e pega o livro, compara formato de rabo, tamanho de olho, todos os detalhes. Hoje mesmo trouxe um peixe que nunca tinha visto, uma moreia. Não quis nem saber o preço. É um investimento de vivenciar o peixe, de conhecer para julgar. Satoshi pegou e já falou “esse é um pouco duro”. Gosto de dar novidades para ele criar — acrescenta.
RELAÇÕES DE CONFIANÇA SÃO A CHAVE
Dez anos no exterior, trabalhando em restaurantes com estrela Michelin, valeram dicas preciosas a João Paulo Frankenfeld, chef do Riso Bistrô, em Ipanema.
— O João Paulo estabeleceu comigo o convívio diário e a confiança. Com isso, ele consegue de mim o primor da matéria-prima, direto com os fornecedores. Quando um chef meu ganha reconhecimento, eu sinto a mesma felicidade — conta Mario Mannarino, um dos representantes do Mercado São Pedro, de Niterói.
É durante a madrugada que eles trocam informações sobre o que o mar proporcionou.
— Eu monto o cardápio de acordo com o que chega de mais fresco no dia. O prato “Surpresa do mar” é isso: às vezes tem cherne; outras, olho-de-cão. E as aparas dos peixes, partes que não permitem fazer um filé bonito (como a cauda), transformo em tartar, ceviche, ravióli — explica o chef.
Segundo ele, comprar peixe de dois ou três dias de mar faz total diferença e, se congelar, o brilho se esvai. Somente o salmão segue outra regra, quando curado em conserva por três dias, para um prato especial.
Pela manhã, o Fasano Al Mare, em Ipanema, também recebe seus frutos do mar, trazidos em carros refrigerados com gelo. Em seguida, são limpos, filetados, separados e embalados a vácuo para estoque.
— Recebemos entregas dos nossos fornecedores diariamente, e é estabelecido que eles fiquem na geladeira por, no máximo, 24 horas. Alguns tipos de frutos do mar são congelados por resfriamento rápido, que é um método seguro, porque alguns não têm entrega diária. Mas não passam muito tempo congelados, devido a critérios de qualidade e alta demanda — diz o chef Paolo Lavezzini.
Partindo da máxima de que peixe fresco é sempre a melhor opção — ainda que hoje, segundo ele, existam técnicas modernas de congelamento muito eficientes —, o ritual a seguir é mão na roda na hora de escolher um bom peixe:
— É preciso estar atento ao cheiro, porque peixe fresco não tem mau odor; depois, no brilho da pele e na baba que ele tem sobre as escamas. Os olhos precisam estar brilhantes; mas há exceções, já que o gelo pode ofuscar os olhos. As guelras precisam ser vivas e cheias de sangue. Passando para a carne, é prudente tocar as costas do peixe. Os dedos precisam afundar, mas oferecendo resistência da polpa — sugere Lavezzini.
ONDE COMER:
Bagatelle
Jockey Club. Praça Santos Dumont 31. Tel.: 3114-7988.
Fasano AL MARE
Av. Vieira Souto 80, Ipanema. Tel.: 3202-4030.
Giuseppe Grill
Rua Bartolomeu Mitre 370, Leblon. Tel.: 2249-3055.
Riso Bistrô
Rua Aníbal de Mendonça 175, Ipanema. Tel.: 2147-8259.
Ten Kai
Rua Prudente de Morais 1.810,
Ipanema. Tel.: 2540-5100.